segunda-feira, julho 03, 2006

Expiar (parte 1)

Para ouvir: Enigma "Beyond the invisible"

Quanto tempo me resta?
Levantei pesarosamente o olhar do papel, tinha os olhos cansados e quando os fechei ficou o rasto branco da sua forma, rectângular e firme, a contorcer-se em sobreposiçoes brilhantes. Eram as marcas reflectidas do papel que li até gastar dele as palavras, e perder na memória o sentido delas. Soube naquele momento que não podia mais fingir que tinha o rumo da minha vida bem apertado entre os dedos. Sai de casa, comecei a descer os degraus, e a cada degrau desejava poder ter motivos para não descer o próximo. E assim fui, derrota após derrota até á porta da fiel cobradora, que me recordava todos os dias, com um sorriso empastado e uma voz sumida, que já haviam passado quinze dias além do prazo legal para pagar a renda. Expunha num tom condescendente: "Estou a ser tolerante porque compreendo a sua situação" mas avisava cáusticamente que um dia teria de ser mais exigente. Depois rodava os calcanhares no chão opaco que cheirava a lixivia, e seguia de volta até casa. Mostrava mais uma vez os dentes cortados em bicos e fechava a porta com um movimento hesitante e arrastado, como se isso lhe causasse algum tipo de dor. E eu ficava pregada ao chão, exposta á talente desta criatura insípida e deselegante que vomitava opiniões e ditava penitências, como se cobrar rendas fosse algo que lhe desse poder divino. Eu sabia que essa aparente compreensão sobre a minha parca situação financeira não era por compadecimento, mas sim uma forma deturpada de me dizer que tinha domínio sobre mim. Na irónica verdade, ela só não tinha domínio sobre os assaltos carnais do marido, que me distribuia lânguidos olhares acompanhados de sorrisos cheios de desejo. Cedo, ela percebeu o fascínio que o seu escorregadio marido tinha por mim, e o facto de eu nunca poder pagar atempadamente a renda era a maneira de ela marcar a linha entre nós. Esse esforço divertia-me, e dava por mim a lançar descarados sorrisos coqueteados áquele homem largo de ossos e curto de limpeza, só para ganhar mais uns dias até ao pagamento. Subi de novo as escadas, mas a cada degrau que subia não sentia o alivio a voltar a mim, sabia que desta vez não ia ser tão fácil.
Quanto tempo me resta agora?