segunda-feira, novembro 19, 2012

São coisas e palavras

Para ouvir: Metallica - Unforgiven II
Simão entrou no quarto e fechou a porta com estrondo atrás dele. Passou a mão pelo cabelo várias vezes como se o estivesse a sacudir. Respirou fundo e largou o ar dos pulmões com violência. Olhou para a Laura com raiva, tinha a boca entreaberta e o maxilar projectado para a frente. 
- Era isto que querias???
- Eu já te pedi, falamos quando estiveres mais calmo.
- Então porque me disseste aquilo tudo? Não comeces o que não tens intenções de acabar.
- Mas eu vou acabar, eu vou dizer-te tudo, mas agora não.
- Agora não porque? Tens um sitio melhor para estares?
- Nao! Preciso de um minuto para respirar; e tu precisas de um copo de água.
- Água? Eu não preciso de água! Tu é que precisas para deitares fora tudo o que não queres dizer.
- Não, não preciso, isto são coisas que nem a água pode lavar.
- O que?? isso nem sequer faz sentido! Fala, FALA... o que é que me queres dizer?
- Eu já te disse, dá-me uns minutos e deixa-me pensar.
- O que é que eu te fiz? Logo eu... eu queria dar-te as chaves do meu castelo!
-Não! Tu querias era fechar-me na torre. Juntar-me ás criaturas imaginárias do teu mundo e manter-me lá, onde seria intocável e onde só tu me poderias ir buscar e fazer papel de herói.
- Nem sei que te responda a isso. Não estou a falar de contos de fadas, estou a falar de nós. 

Laura abriu os olhos e fixou-os no Simão. A garganta doia-lhe de segurar o choro. Ela sabia que se dissesse mais uma palavra que tudo ia sair como uma malha solta. Ficou só assim a olha-lo... O rosto angustiado de Simão partiu-lhe a armadura. O lábio começou a tremer, ela ainda o mordeu para tentar disfarçar, mas os olhos encheram-se de lágrimas e começaram a cair em grossos pingos pelo rosto.
Simão aproximou-se dela, segurou-lhe os braços e numa voz tremida perguntou:
- O que é que fizeste???
- Eu posso colar as folhas do calendário, mas não posso fazer o tempo voltar atrás.

Simão deu uns passos para trás até tocar na parede. Segurou a testa com uma mão e limpou o rosto.
- Sabes, rasga-me o coração ficar de fora a ver-te bater com a cabeça nas paredes. Vejo-te a ficar magoada, a ficar dorida, mas insistes; e eu não te posso parar porque isso não mudava nada, não é? Tu serás sempre assim.
- Não te atrevas a julgar-me, não te aches dono de uma razão que não tens, nem enchas demasiado o peito, porque o que vai, invariavelmente volta.

Simão ia responder, mas sentia-se sem forças. Tinha a cabeça a andar á roda e a boca seca. Sentou-se na ponta da cama e disse: 
- Sai então; vai recuperar os teus minutos.

Laura passou rapidamente por ele sem o olhar. Quando estava a passar a porta do quarto, o Simão pediu-lhe que esperasse. Ela deteve-se mas não se virou, olhou-o por cima do ombro e ele disse-lhe:
- Deixaste-me ficar só a tua ausencia para eu abraçar.

Laura fechou a porta,

Silêncio.

sábado, novembro 17, 2012

De um lado ao outro há apenas o mundo.


Para ouvir: James Morrison - Wonderful world
Sofia estava de pé. Olhava-se ao espelho enquanto escovava o cabelo em movimentos repetidos sem se dar conta que estava a escovar os mesmos fios há demasiado tempo. Reflectido atrás dela estava o seu quarto. Sempre arrumado e organizado. Os cortinados brancos imaculados, os moveis sem vestígios de pó. Livros, molduras, e recordações geometricamente enquadrados nos tampos de madeira. Os quadros na parede tinham sido pregados a fio de prumo, e as suas imagens eram de paisagem bucólicas e cenários de flores e cores amenas. Assim era o quarto dela, o mundo que a pouco e pouco foi construindo com a aprovação de todos os que importavam para ela. E assim também se via ela, a menina bem comportada, de aspecto candido que todos esperavam que fosse. O rosto dela era inexpressivo, as linhas que lhe marcavam a cara não tinham emoção. Só os olhos brilhavam! Os olhos dela fixavam-se agora no infinito, quando a visão começou a ficar turva fechou-os. Esperou uns segundos, deteve-se nos seus pensamentos sem perceber que continuava de olhos fechados, e quando finalmente os abriu, Sofia estava do outro lado do espelho. Deste lado do espelho era tudo diferente. Era um outro mundo... Deste lado do espelho havia vida! Paredes pintadas de vária cores, um par de sapatos perdidos no chão, a janela aberta deixava entrar o sol e uma brisa que agitava os lençois da cama por fazer. Deste lado a Sofia tinha o cabelo solto, um sorriso que lhe vincava as marcas do rosto, e os olhos, inundados de coisas novas, tinham algum medo pela descoberta saborosa naquele mundo novo. Deste lado ela podia desarrumar tudo, podia partir o que não gostava e deitar fora o que lhe trazia más recordaçoes. Deste lado podia pensar livremente, cantar alto e dançar descalça sem medo de se cortar. Mas deste lado havia perigos, nesta parte do espelho não havia ninguem do lado de fora da porta. Deste lado tudo era perfeito no quarto, mas não existia mais ninguem senão ela. Sofia respirou fundo, o sorriso esmureçeu. O que podia fazer ela? Ficar naquele quarto??... onde se sentia mais leve que uma bola de sabão, poder vive-lo, toca-lo, senti-lo e respira-lo numa felicidade que só ela percebia. Ou voltar para o outro lado do espelho??... onde o quarto lhe apertava o peito e a algemava ás paredes, mas onde toda a gente queria que ela estivesse, e onde todos achavam que era o lugar dela. Era esta a sua escolha!! 

segunda-feira, outubro 29, 2012

Dois caminhos

Para ouvir: Jeff Buckley - Lover you should've come over
O António corria. O corpo já termia, a lingua doía em tensão, e o suor gelado colava-lhe o cabelo ao rosto. Ele sabia que nao podia parar...
Já corria sem rumo e sem coordenação há mais de duas horas. Estava exausto e perdido mas sabia que não podia parar...
Ele estava preso ao rumo das coisas que tinha escolhido para si, ele achava que seria melhor assim mas agora tinha levado o murro das coisas que não queria ver, e pensava: "e agora o que é que eu faço?" nada á sua volta lhe podia dar uma resposta e ele não podia parar...
O sangue pulsava nas veias, pressionado pelos batimentos e quase rebentava pelos poros, mas o António não podia parar...
Já era noite, só se ouvia o som dos galhos que estalavam esgamados debaixo dos pés, e a respiração descontrolada e rasgada do António. E ele pensava: "quem me dera poder voltar atrás, mudar os detalhes do que fiz, do que me fiz, do que nos fiz, só queria poder mudar os pequenos detalhes que me trouxeram aqui". Os pensamentos começavam a formar frases, mas mesmo assim ele não podia parar...
O António sabia que não podia passar mais um dia ser resolver o labirinto que criara na sua vida, sabia que assim que chegasse a casa tinha de tomar uma atitude, sabia que assim que o corpo cedesse, a razão iria obriga-lo a voltar ao seu mundo, por isso ele não podia parar...

A chuva que caía já há algumas horas começou a engrossar e a luz dos relâmpagos riscava o céu.
O António escorregou na terra ensopada e torceu um pé, ouviu um estalo mudo seguido de uma dor fina insuportável. Encostou-se contra uma arvore e sentiu os pulmões a contrair num aperto de garganta sufocante. Ficou parado, segurava o tornozelo com uma das mão e com a outra limpava o rosto e pensava: "não posso parar"

A lua já tinha corrido metade do céu, a chuva já tinha parado e o peso das decisões empurrava o António num passo torto e cansado. Mas ele não podia parar...

Por fim o corpo entrou em falência, os pés bateram um no outro e o António não conseguiu controlar o peso do corpo e ajoelhou-se no chão. Foi ai que soube que não podia correr mais. Tinha só o caminho para se perder dentro da floresta, ou o caminho para voltar para casa.

O António não devia ter parado de correr...