terça-feira, fevereiro 26, 2013

Eram cinco...

 Para ouvir: Run Boy Run, Woodkid

O vento assobiava na porta do café. Lá dentro estavam 5 pessoas, todas sozinhas espalhadas por cinco mesas, nenhuma delas se olhava.

Na mesa mais perto da porta estava o André, escolhia sempre aquela mesa porque era perseguido pela paranoia do incêndio espontâneo e queria ser o primeiro a fugir caso acontecesse; a veia de herói não lhe estava no corpo. Mas não era nisso que o André agora pensava... ele pensava no segredo dele. Durante anos guardou-o como se da sua vida se tratasse. Era embaraçoso e difícil de explicar e por isso nunca sonhou que alguém, algum dia o pudesse saber. Mas ontem tudo mudou, ontem... só por causa de um pequeno detalhe, o seu segredo ficou exposto. Uma pessoa tinha arranhado o suficiente para o descobrir por baixo da pele de André. E agora?.. e agora?? pensava ele... Imaginava o olhar de espanto de alguns, o olhar de desaprovação e desilusão de outros e sobretudo atormentava-o os olhares de troça e as piadas baixas que se lhes seguiriam. Tinha a alma afundada em angustia, estava perdido de medo e raiva mas nem lágrimas conseguia chorar. Uma mão a tremer segurava uma caneta enquanto a outra puxava um guardanapo para junto de si; e começou a escrever.

Na mesa em frente a de André estava o Rui. O Rui tinha o olhar fixo num ladrilho partido no chão do café. Estava pálido e frio. Quase não mexia um músculo, mas a sua cabeça estava a mil. Fazia contas, refazia-as. Pensava em soluções ou em alguém que o pudesse ajudar. Ele tinha tudo controlado na sua vida, nunca nada lhe tinha escapado. Mas ontem tudo mudou, ontem... só porque se quis aventurar deitou tudo a perder. Foi um impulso que o levou aquela casa de paredes mal pintadas e porta com 2 fechaduras. Quando entrou sentiu um forte cheiro a tabaco e muita tensão no ar. Na mesa redonda estavam já cinco pessoas com fichas coloridas contadas em frente deles, em seguida veio o desafio: então, vens jogar ou vais sentar-te ao meu colo, princesa?? O Rui não sabe se foi por vergonha ou revolta que se sentou naquela mesa e jogou ali tudo o que tinha para se sentir tão poderoso quanto os outros. O que é certo é que Rui perdeu tudo e ainda apostou o que não tinha. O que ele tinha agora eram 48 horas para pagar aqueles tipos tudo o que tinha ficado a dever. O Rui engoliu em seco, pegou no telemóvel e percorreu, quase sem ver, a lista de contacto em busca de um nome que surgisse como a solução para o seu problema. Viu a lista de cima abaixo mais de dez vezes sempre sem se deter em nome nenhum. Acabou por pousar o telemóvel na mesa. Cruzou os dedos e tombou a testa sobre eles. Ficou novamente imóvel a pensar.

No outro canto do café, na mesa mais escondida de todas estava a Mariana. A Mariana tinha a cara encostada ao vidro da janela. A expressão dela era sombria, tinha o rosto fechado e sem vida, parecia estar só a espera do anjo negro. Tinha olheiras carregadas, negras e inchadas até meio do rosto. Os olhos estavam vermelhos de tanto chorar. A Mariana tinha sido muito feliz, tinha experimentado tocar o céu sem sair do chão, tinha sentido a vida a inunda-la de calor, tinha rodopiado numa dança até ter perdido os sentidos e caído nuns braços que a seguraram e prometeram agarra-la assim, até ao fim dos tempos. E tinha sido assim, até ontem...ontem tudo mudou. Ontem ele chegou a casa com uma expressão perdida e com um discurso atordoado.Pediu desculpas antes mesmo de explicar o porque. Disse-lhe que a culpa não era dela, que ele tinha sido fraco... A Mariana sentiu aquilo como uma forte pancada na nuca que a deixou exangue  até aquele momento. Que sentido tinha para ela agora a vida, se a vida dela era ele?! O que ia fazer ela agora? Quando saísse do café ia para onde? Ela não pertencia em lugar nenhum se ele não estivesse também lá. A chuva não molhava e o sol não aquecia se ele não estivesse ali. Nem o tempo, o tempo não se mexia se não fosse para ser passado ao lado dele. A cara da Mariana escorregou pelo vidro até tocar o parapeito da janela, ela nem percebeu que estava agora quase deitada sobre a mesa. Suspirou quase sem força e fechou os olhos.

Na mesa ao lado da Mariana estava o Pedro. O Pedro sempre se tinha considerado um homem com sorte, não tinha duvidas que sempre se tinha esforçado por conseguir o que queria, mas uma estrelinha também tinha estado sempre com ele. Tinha conseguido muito e tudo o que tinha eram representações das suas conquistas, e ele nunca tinha sido muito tímido a mostra-las aos outros. Mas ontem... ontem tudo mudou. Ontem o chefe tinha mandado chama-lo. O Pedro entrou na sala do chefe com o sorriso confiante de sempre, mas assim que olhou para ele percebeu que aquele não era um momento de sorrisos. Ouviu tudo o que o chefe de lhe disse, sempre de cabeça baixa sem dizer uma palavra. "as coisas não estão a correr como prevíamos..." e Pedro ouvia "o projecto foi um fiasco..." e Pedro ouvia... "alguém vai ter de se responsabilizar por isto...". Quando aquele discurso ensaiado terminou, o Pedro levantou-se apertou o botão do blazer, fez um aceno com a cabeça e saiu. Ele queria ter argumentado, queria ter-se defendido, mas sabia que o menino dentro dele ia soluçar, implorar, arrastar os joelhos no chão, sujeitar-se à cena mais humilhante que alguma vez teria feito na vida; e assim saiu... sem dizer uma palavra. Pedro sentia-se zonzo, queria raciocinar, arranjar uma solução mas estava perdido. Como ia ele explicar isto? como teria ele a coragem de dizer o que lhe estava a acontecer, depois de anos a esfregar o sucesso dele na cara dos outros? E as contas... como ia ele agora sustentar a vida a que estava habituado, as coisas que ele achava que faziam dele quem ele é?? Pedro pediu mais um café e ficou à espera.

No canto do balcão estava a Isabel. A Isabel já há muito que tinha deixado de lutar. As roupas dela estavam sujas, o cabelo desalinhado e as unhas maltratadas. Tinha determinado que hoje seria o último dia da sua vida... Há vários dias que andava a pensar como haveria de o fazer, tinha ponderado todas as hipóteses. Não queria sentir dores, não queria sofrer as consequências de uma tentativa falhada e sobretudo não queria que fosse humilhante. Sendo assim optou por um tiro, um simples tiro na cabeça. Sabia que ia provocar destruição e sujidade, isso no inicio incomodou-a, mas depois achou que não devia importar-se com isso porque afinal de contas não era ela que ia limpar e assim sempre poderia morrer de pé. Pensou se haveria de escrever uma carta, uma carta de despedida, ou uma carta a explicar as razoes que a tinham levado a fazer aquilo. Mas depois pensou que ninguém iria querer saber, que estariam todos muito ocupados a fazer as contas e as divisões da herança que ela iria deixar. Ontem... ontem nada mudou, mas hoje tudo ia mudar para Isabel.

Atrás do balcão estava Isaac. Isaac era um rapaz cheio de sonhos. Estava atrás daquele balcão para poder pagar as propinas da universidade e viver com alguma dignidade. Isaac não tinha um problema, mas conhecia bem os problemas. Tinha estado durante a última hora a observar os clientes desesperados que tinha à sua frente. Conseguia perceber qual era o problema de cada um. Mas não era isso que lhe ocupava o pensamento, o que o atormentava é que ele sabia que cada um deles era a solução para o problemas dos outros, mas nenhum deles sabia isso. Nenhum deles levantou os olhos para olhar os outros. 
O turno de Isaac estava a terminar e a colega que o substituía já se via no fundo da rua. Antes de sair para se dedicar à sua vida e aos seus estudos, Isaac escreveu 5 papelinhos e enquanto percorria o café até à saída foi entregando os papelinhos a cada um dos 5 clientes. Uns pegaram nele imediatamente enquanto faziam uma expressão intrigada, outros deixaram na mesa. Mas todos acabaram por ler o que estava escrito. Assim, um a um todos foram arrancados da bolha que tinham criado à sua volta e finalmente olharam-se.