quarta-feira, junho 14, 2006

Devolve-me

Para ouvir: Adriana Calcanhoto "Devolva-me"
Caminhava sozinha, era comandada pela força intuitiva dos meus pés que me levavam ao destino que por momentos esquecera... Foi então que te vi! Todo o meu corpo se electrizou num delírio febril que me fez cambalear ( e eu que queria tanto ver-te), quase sem pensar virei-me de costas para ti, num movimento tão brusco que denunciava o meu medo de encarar o teu sorriso e permitir que a vibração da tua voz entrasse em mim. Percebi que olhava para a montra de uma agência de viagens, e vi ali... a desafiarem-me sem dó todos os destinos em que nos imaginei, em imagens tentadoras e coloridas que quase me toldaram os sentidos. Mas depois esqueci-as; vi o teu reflexo passar por ela. Reconheci nele todos os movimentos teus que decorei para me recordar deles sempre que te visse aproximar de mim. Deixei-me ficar, galvanizada, a observar cada gesto teu... cada passo que davas, imaginei como estaria a tua respiração (como a sentiria em arrepio no meu pescoço, como tantas vezes senti), imaginei como estaria o teu batimento cardiaco (que tantas vezes soube que a minha presença acelerava). Seguiste caminho e o teu reflexo seguiu-te, o meu mundo ficou mais vazio, perdi a tua imagem... perdi-te! Fiquei só eu no reflexo, percebi como tão distintamente ele me mostrava assim. Olhei os meus olhos vazios, e lembrei-me de como eles eram vivos quando estavam cheios com a tua forma. Tentei seguir o caminho que irónicamente me levava para mais longe de ti. Mas tive de olhar, rodei o pescoço e procurei-te na rua... sentia o vento a acarinhar-me pesarosamente o rosto, senti o meu cabelo roçar com delicadeza os meus lábios, vi-te... fechei os olhos e deixei que ele me recordasse o toque do teu beijo. Gritei-te em silêncio: Devolve-me todos os sorrisos que te dei, devolve-me a calma e a paz de espirito que demorei tanto para conquistar. Devolve-me o pedaço de mim que sem o meu consentimento me tiraste... Devolve-me tudo... preciso de tudo, não me reconheço sem esses pedaços! Pedem-me que reaja mas sem eles não me consigo erguer. Gostava de ter-te dito tudo, gostava que o tivesses percebido! Agora quero esquecer o teu nome, saber quem nele habita e quem o chama como seu! Imagino o dia em que o meu caminho trace distraido uma perpendicular com o teu, o dia em que passe por ti e te sorria... o dia em que a minha voz deslize firme e segura até ti: Vivemo-nos muito... respiramo-nos pouco!!

Títeriar

Para ouvir: Jorge Palma "Estrela do Mar"


Viste o teu rosto ao espelho... tinhas o mesmo olhar carregado, eram noites mal dormidas (Tenho tanto que estudar, falta-me tempo...posso comprar tempo?)... Deixaste a água fria que jorrava livre e desprendida lamber-te os dedos. Sentiste-te mais desperto, então recordaste...
Mas deixa-me recordar-te...
É sempre um sorriso! Conheço bem o teu jeito... caminhar seguro, um pouco balançado, mas próprio de quem conhece bem o trilho que pisa. Conheço bem a tua voz... vincada, um pouco embargada em sisios. De argumentos fortes, sólidos! Sempre um sorriso...

Recordaste o teu universo, a forma como seguras tudo na tua mão, num jogo de marionetas que dedilhas como um precioso piano de cauda, ninguém tem de te obedecer, mas embalados pela melodia todos o fazem.
Olhaste de novo o teu rosto no espelho, notaste como estava cansado, mas nesse momento recordaste um rasgo de humor que alguém teve sobre esse olhar carregado... (as coisas que eles se lembram)... e abriste para o espelho o teu sorriso! Aquele sorriso... aquele que só reservas para com quem podes ser autêntico, com quem podes ser o menino despreocupado e delicado que sempre quiseste ser. Todos os traços de cansaço desapareceram quando vincaste na pele a força desarmante do teu sorriso. Sentiste então a água que já teimosa de fria te começava a incomodar. Levaste as mãos ao rosto... Mais um olhar... estou pronto para o meu dia!!
Para que te recordes... foste abençoado com o olhar gélido de um arrogante... e o sorriso de um anjo!!

sábado, junho 10, 2006

Espaço de outros....

Para ouvir: Gary Jules "Mad World"
Dos lábios que me beijaram,
Dos braços que me abraçaram
Já não me lembro, nem sei...
São tantas as que me amaram!
São tantas as que eu amei!

Mas tu, que rude contraste!
Tu, que jamais me beijaste,
Tu, que jamais abracei,
Só tu, nesta alma, ficaste,
De todas as que eu amei.

Paulo Setúbal






"O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei."
José Luis Peixoto in "Morreste-me"