terça-feira, novembro 14, 2006

Delito


Para ouvir: Archive "Need"



Olá... Todos os dias passas por aqui á mesma hora, todos os dias fico ansioso á espera que passes, e quando te atrasas sinto um formigueiro desagradável no peito e na ponta dos dedos com medo que te tenhas decidido por um outro percurso. Será que me vais deixar viver mais tempo nesta morna agonia, ou desta vez vais-me deixar caminhar contigo e entregar-te no teu destino?

Foi assim que ele me abordou, foram estas as primeiras palavras que me disse, falou com tanta rapidez que quase mudou de cor prestes a sufocar, parecia que tinha escrito aquele discurso e que foi obrigado a debita-lo com aquela velocidade por medo de se esquecer de alguma parte! Aquele podia bem ser mais um "pinga-amor", daqueles que nos fazem sentir a mulher mais que tudo no mundo e em seguida atiram-nos para o grau zero com a violência de uma implosão. Mas aquela abordagem... se era pra eu ser só mais uma ele fez com que valesse a pena. E assim deixei que ele me acompanhasse, e com o tempo ia deixar mais, muito mais...

- Não queria que esta fosse a banal conversa de engate que deves estar habituadissima a ouvir, mas infelizmente vou ter de te fazer a típica pergunta; por favor... dizes-me o teu nome?

- Vamos tornar isto interessante, e eu revelo-te o detalhe mais insignificante da minha vida depois de te contar alguma coisa com valor sobre mim!

Eu não moro muito longe do local onde ele me abordou, mas o gosto pela sua companhia fez-me dar a volta mais longa. Quando me apercebi que ainda assim estavamos muito perto de chegar comecei a andar em circulos e fiz-nos passar várias vezes pelos mesmos sitios. Eu sei que ele percebeu o que eu estava a fazer, mas foi cavalheiro ao ponto de não tirar partido do meu visivel interesse em mantê-lo mais tempo comigo. E isso fez-me querer fazê-lo rodar muito mais vezes as ruas do meu bairro. Por sim, cedemos ao cúmulo das voltas repetitivas, e com um riso descarado e cativante ele disse-me que era melhor sentarmo-nos no banco que já o estava a provocar desde a 12ª volta! Eu ri-me, tinha sempre que me rir... era tão inesperado e perfeito!! Conversámos horas; em qualquer outra situação o banco teria sido incómodo, muito provalvelmente eu tinha dores em todo o corpo, mas nada me levaria a sair dali, a menos que a companhia dele me levasse. Ele ouvia-me com tanto interesse que eu podia jurar que tudo o que eu lhe dizia tinha o encanto da revelação, era como se o mundo lhe fosse apresentado com cores que nunca antes tinha visto. Por fim ele tocou no meu cabelo, com um gesto distraido pegou numa mescla e enrrolou-a repetidamente entre os dedos. Tinha dedos esguios e longos! Com a despropositada desculpa de que o cheiro do meu cabelo lhe era familiar, aproximou-se para o cheirar mais perto. Eu baixei um pouco a cabeça, já aturdida pelo arrepio que sabia que ia sentir quando ouvisse a respiração dele tornar-se mais funda perto do meu ouvido!

Passaram mais alguma horas quando ele, a meio de uma frase, parecendo ter sido atacado por uma amnésia súbita, levanta-se e diz:

- E o teu nome? Já me disseste coisas valiosas sobre ti... falta o teu nome!

Eu ia levantar-me também, quando percebo que ele estava a balançar os pés na ponta do passeio alto. Estiquei o braço para o segurar, e sabia que assim que ele voltasse a equilibrar-se ia dizer uma qualquer piada sobre isso e eu ia rir até ficar a respirar em golfadas fracas. Mas o meu braço não chegou até ele... quando o vi esticado pensei que tinha encolhido, dei um passo rápido na sua direcção mas não fui a tempo. O peso do corpo dele, em desleal equilibrio, estava a puxa-lo para a estrada. Ouvi o chiar encrespado da borracha a queimar o asfalto... e vi o corpo dele ser projectado, perder a forma e tornar-se difuso. Depois foi tudo demasiado rápido, ouvia vozes, alguns gritos. Os meus olhos estavam focados no corpo dele, inerte, estendido do cinzento do chão, e que agora parecia estar a alastrar até ao seu rosto. Eu estava de joelhos perto dele, mas parecia-me que teria de andar quilómetros até o alcançar, arrastei-me até mais perto; vi algumas pessoas correrem até junto dele e pegarem-lhe. Havia pessoas de pé e algumas, as que o seguravam, estavam tal como eu de joelhos. Vi corpo dele distribuir o seu peso pelas imensas mãos que o agarravam, todo aquele cenário me pareceu bizarro, saido de uma qualquer tela obscura da idade média. Quis agarrar na mão dele e fugir dali, ir para um mundo paralelo onde ele não se desiquilibrou e onde não se ouviu o som derrapante dos travões. Rastejei até perto dele, deixei o corpo flácido dele aterrar em mim, aproximei-me e senti o cheiro do cabelo dele. Enquanto o som das sirenes estalava o silêncio da noite, disse-lhe: O meu nome é ...........

5 comentários:

Anónimo disse...

Costumo passar por aqui, mas nunca comentei!Mas este texto... Ás vezes parece que contas pedaços da minha vida. O meu "pinga-amor" não foi atropelado, mas n sei dele há quase um ano, parece q de certa forma tb morreu! Gosto mt da maneira como escreves.

Lúcia

Anónimo disse...

Simplesmente Magnifico!Muitos parabéns...

mara disse...

Lucia: Quem disse que este era realmente um "pinga-amor"?E quem disse que ele morreu? Se essa foi a interpretação que fizeste é porque ainda tens coisas a resolver com o teu "PA"!Obrigado por passares e obrigado por gostares!
Triunfo: Conciso e elogioso como sempre!Obrigado pela assiduidade :D

Anónimo disse...

F-A-N-T-A-S-T-I-C-O!!!!!!

Santiago de Sousa disse...

Gostei do texto e especialmente da sugestão sonora, só mostras bom gosto! :D