segunda-feira, maio 29, 2006

Ao 5º Passo

Para ouvir: Yann Tiersen "Comptine d'une autre été"
Bateu a porta atrás de si, entrou em casa e sentiu o cheiro familiar do que costumava ser o calor porque esperava o dia inteiro por voltar a sentir. Olhou á volta e viu tudo no seu exacto lugar e invadiu-o a saudade da forma como antes gostava do que via. Deu dois passos, sabia movimentar-se naquele espaço de olhos fechados, experimentou fecha-los... recordou com as mãos apertadas em dor que visão outrora teria quando os abrisse. Um a seguir ao outro chegou ao quinto passo. Abriu então os olhos! Sabia de cor a disposição dos móveis que o rodeavam, mas sabia que a figura humana que se destacava á sua frente teve em tempos um sorriso. Olhou para ela com uma expressão glaciar, se algo nele fosse lido numa mais comum expressão facial ele seria derrotado pelas palavras que presas na língua nunca conseguiria dizer. Os lábios dela moveram-se ameaçando soltar no ar alguma palavra, ele estremeu com aquele breve momento, já conseguia ouvir o ressoar do fracasso muito antes de ele começar a bramir. Uma lágrima escapou tão brilhante quanto inesperada dos seus olhos quase sem cor, a sua mão cortou cada milimetro de ar até conseguir pedir á figura inerte á sua frente que não começasse a falar. Com um braço esticado na sua direção a figura parou de o acusar; cravou os olhos no tapete que tantas vezes sentiu o cheiro do seu amor e ficou estática; a três passos do quinto passo que ele deu desde a porta por onde entrara. Com a voz trémula e vazia de emoção disse-lhe "Fiz o juramento que sempre te diria a verdade, e que te consolaria com a mentira." Ela sentiu-se apertada entre os maxilares de um lobo, nua exposta e ferida. Toda a sala parecia embaraçada de presenciar aquele momento e o tempo sentia estar proibido de passar por ali. "Sei o que sinto, o que te fiz e sei que te amo". Ela que parecia embrulhada numa fita invisivel, sentiu desembaraçar-se dela num estalar de dedos. Deslizou os pés pelo tapete saudoso deles e ao décimo passo parou, pegou numa pedra translúcida com umas letras de amor gravadas num momento em que nem elas chegavam para o que ambos sentiam. Num impeto atirou-lha com toda a raiva que sentia, não por desprezo por ele mas sim por si mesma, por saber que lhe perdoaria. Ele desviou-se e com um silvo a pedra rasgou-lhe o ar nos ouvidos, a voz dela quebrou a violência do momento "ai tens mais uma pedra no nosso caminho". Ainda desiquilibrado focou-a e já direito disse-lhe "Se eu olhar para essa pedra como um tesouro saberei que estou cercado deles e se, como a qualquer pecador, me forem atiradas mais pedras estarei a receber diamantes e ouro". A voz dela já não cabia na sua garganta e a multidão das palavras esmagavam-se para sair, mas inibidas pelo pressentimento da resposta fechavam-se em si. Foi sem ar no peito e com as náuseas provocadas pela mágoa de não saber como chegar até ela que disse "eu quero ir" com a mão ainda a tremer pegou num lenço de cor viva que desafiava todo o ambiente que o envolvia, levou-o ao rosto e limpou a ultima lágrima. Tudo isto sem nunca ter saido do quinto passo onde chegou de olhos fechados. Endireitou-se tanto quanto os seus musculos lho permitiam e ao sair sentiu-se como um grão de areia a brilhar no deserto... orgulhoso por saber que na sua ausência o deserto ficaria mais pequeno.

(To:..........Porque a dor do que vai acontecer é um adormecimento dela mesma)

2 comentários:

Anónimo disse...

Um estilo de escrita profundo, a transmitir emoções com uma densidade tal que se sente na pele ao ler...
Parabéns, Mara, adorei este texto, e espero q continues a escrever tão bem por muito tempo!
Para quando o livro?
Jorge.

mara disse...

Jorge... Ouves-me tanta vez, limpas-me tantas lágrimas e ainda tens tempo para comentares os meus textos!Muito e muito obrigado!!
P.S. Sê feliz em Londres!